Por que o hino do Flamengo é um paradoxo da filosofia
O hino do Flamengo faz parte da obra de Lamartine Babo, o prolífico compositor que prestou seus serviços a vários clubes do Rio de Janeiro, mais notadamente o próprio Flamengo, além de Fluminense, Vasco da Gama e Botafogo, além de outros figurantes do futebol brasileiro. Aí está o poder do eu-lírico, pois Babo não se obrigou a jurar amor a qualquer um desses clubes; precisou apenas emprestar seu talento para traduzir a essência e valores desses clubes em palavras. Também é possível entender a musicalidade do hino do Flamengo pelo vídeo do projeto Piano que Toca, de Antonio Vaz Lemes.
Porém, há um trecho no hino que intriga — ou deveria intrigar — todos aqueles que estudam, ensinam ou se interessam por Filosofia:
Eu teria um desgosto profundo
Se faltasse o Flamengo no mundo
Toda vez que esta parte é executada, a cabeça deste filósofo já começa a ferver. Isto porque o que é oferecido ali representa um paradoxo da Filosofia. Mas como?
Este verso em particular é passível de duas interpretações distintas, que, até onde sei, nunca foram elucidadas pelo autor. Pelo primeiro caminho, entende-se que o clube existe, mas deixou de existir em algum momento do tempo. Torna-se assaz curioso imaginar, mesmo que poeticamente, que uma instituição sólida e exaltada por suas conquistas poderia desaparecer, por qualquer motivo que fosse. Não estamos falando do União São João de Araras ou o Sport Clube Sorocabano; trata-se do time com a maior torcida do Brasil e que está sempre "nas cabeças" dos campeonatos que disputa. Semelhante raciocínio acontece com o São Paulo Futebol Clube, quando diz que "no dia em que tu não existir (sic), eu não quero sorrir nunca mais". Mas até aí, prever (e não desejar) que o clube um dia deixe de existir soa mais como um desalento que uma premonição.
O paradoxo proposto se dá, efetivamente, a partir de uma segunda interpretação: quando entendemos que se faltasse o Flamengo no mundo significasse que o clube nunca existiu, quer dizer, aqui a expressão se faltasse equivale a nunca ter existido. E aí vem o problema. Segurem-se!
É impossível sentir falta de algo que nunca existiu, ou ter um desgosto profundo sobre algo que nunca houve. É necessário que algo tenha existido e seja passível de conhecimento prévio para que sua posterior ausência seja lamentada. É possível sentir a falta de uma pessoa com quem nunca interagimos? Pessoa ou objeto que se desconhece forma ou presença? É possível sentir falta de algo que não se tenha qualquer informação? Vamos tentar, juntos, caminhar por este raciocínio.
Inicio, logo de cara, com uma proposta cabeluda: o Dasein, de Heidegger. Dasein significa, de forma EXTREMAMENTE E QUASE CRIMINOSAMENTE RESUMIDA, a existência percebida, ou seja, um ente que é presente e se confronta com o mundo físico de forma prática. Se algo existe, interage. Se algo existe, faz parte. Se algo existe, deixa rastro. Se algo existe, ultrapassa o metafísico. O Dasein é algo que faz parte do mundo ou de algum sistema, e que é cognoscível. Reforço: esta ideia está PORNOGRAFICAMENTE REDUZIDA apenas para fins argumentativos. Nesta esteira, o Flamengo existe, é perceptível e todos conhecem. O Flamengo preenche os requisitos do Dasein. Assim, Lamartine poderia se referir a algo que cessou na própria existência. Para tentarmos dar mais sustentação ao argumento, vamos investigar o problema por outro parâmetro: o existencialismo.
Se pensarmos a ideia de existir a partir de Kierkegaard, depararemo-nos com a condição da angústia. Para este filósofo, a existência implica em carregar o fardo do pecado original e, portanto, em assumir a decisão de viver de acordo com o livre-arbítrio. Diferentemente de Heidegger, o existencialismo de Kierkegaard tem a ver com o compromisso de seguir a doutrina cristã ou abandoná-la. É importante notar que Nietzsche e Kierkegaard vão em sentidos diferentes com relação à religião: enquanto Nietzsche propõe abandonar toda a moral criada pelo cristianismo da Europa Ocidental e começar algo novo — ideias contidas no niilismo e na transvaloração de valores — , Kierkegaard propõe o regresso a um cristianismo fundamental, ou seja, aos valores originais da religião, o que faria com que suas ideias se confrontassem com as de Agostinho de Hipona ou de Plotino — do neoplatonismo. O Flamengo poderia existir e carregar o fardo de sua existência, então.
Já o existencialismo de Sartre propõe que primeiro existimos e depois somos — ou seja, a existência precede a essência. Para ele, somos jogados no mundo e, a partir deste ponto, construímos quem somos pelas nossas ações e entendimentos sobre o mundo. Veja como o site Brasil Escola simplifica tal conceito:
Ser-em-si: é aquele que tem uma identidade definida, ou seja, são os objetos e as coisas. Faz parte também do ser humano, pois é o seu corpo;
Ser-para-si: tem consciência de si, vive para si, mas não tem uma identidade definida. É a consciência que nos compõe enquanto seres humanos.
Assim, o Flamengo tem consciência da sua existência, mas será forjado na materialidade, como propõem Marx e Engels. Para os três — Nietzsche, Kierkegaard e Sartre — , tudo está fundamentado na liberdade de ser (ou existir). Mas o que configura a condição de existência, que vem antes de qualquer coisa que se pense sobre ela, é o que Heidegger propõe, ou seja, o Dasein é a premissa básica para que todo o resto seja habilitado, já que existir significa ser perceptível no tempo e no espaço. Então, para que se possa ter um desgosto profundo se faltasse o Flamengo no mundo, é imperativo que ele tenha existido sob qualquer circunstância. Se o time existiu e desapareceu (como ir à falência e fechar as portas, por exemplo), então este sentimento é válido; se nunca existiu, tal desgosto torna-se inviável.
O que Lamartine Babo quis dizer, então? Que o Flamengo existiu algum dia e depois cessou de existir, ou que nunca existiu em tempo algum? Talvez nunca saberemos, ou saberemos após uma investigação mais aprofundada sobre o lirismo de sua composição. O que podemos afirmar CATEGORICAMENTE E SEM SOMBRA DE DÚVIDAS é que o título do Campeonato Brasileiro de 1987 existiu de fato, e este pertence ao Sport, conforme decisão do STF — e aí não há o que contestar. Enquanto a filosofia se atém ao fato, e não à opinião, não é permitido relativizar o que é evidente. O título de 1987 do Sport, diferentemente do intuito de Lamartine Babo em sua composição, é evidente e inexorável.